sábado, 26 de março de 2011

Sopa de Peixe da Minha Avó


É à minha avó materna que devo algumas das melhores recordações da minha infância. Lembro-me do fascínio com que a ouvia falar das suas memórias dos anos 40, de como os pais das meninas “de bem” as obrigavam a esconder-se dos soldados que por cá se encontravam por altura da Segunda Guerra Mundial, lembro-me de me ter falado pela primeira vez dos amores de Pedro e Inês, de me ter cantado A Moleirinha, de Guerra Junqueiro, que aprendera na sua escola primária, durante o Estado Novo, lembro-me de me ter ensinado as primeiras letras, através da Cartilha Maternal, de João de Deus, e do entusiasmo com que pegava na “minha” cartilha e rumava à casa dela, que morava perto de nós, num tempo em que crianças com cinco anos ainda podiam sair à rua sozinhas, pois o trânsito não era tão perigoso como o de hoje em dia.
Por vezes, pedia à minha mãe para passar lá a noite. Sabia-me tão bem ser mimada…
Na casa da avó, rezava-se o terço todas as noites e eu, como hóspede, participava no ritual. De seguida, via-se um pouco de televisão (não muita, pois no final dos anos 70, nos Açores, o único canal existente era a RTP Açores, e a emissão acabava cedo, ao som do hino dos Açores). De manhã, bebíamos o leite com cevada, que tinha que esperar pacientemente, na cafeteira de esmalte azul, até que o pó assentasse.
Lembro-me do meu avô a chegar da pesca, com o seu baldinho com peixe, e de eu saltitar à volta da minha avó, enquanto ela amanhava o peixe para fazer esta sopa, com a qual participo no desafio “Conte-me a sua receita”, promovido pelo blogue www.cincoquartosdelaranja.blogspot.com.


Ingredientes:
1 cebola grande, picada miúda
3 dentes de alho, picados miúdos
1 colher de sopa de banha
2 colheres de sopa de polpa de tomate
2 colheres de sopa de vinagre
1 colher de sopa de manteiga
Água (a terrina onde se vai servir a sopa, cheia)
4 peixes (boca-negra, dos mares dos Açores, ou outro peixe branco, de escama)
1 raminho de salsa
Pão de véspera, cortado em fatias finas

Primeiro, a minha avó cortava os peixes a meio e temperava-os com sal. Fritava-os em óleo ou banha e reservava-os.
Fazia um refogado com a banha, a cebola e o alho, até estarem douradinhos. Juntava a polpa de tomate, o vinagre e a manteiga e deixava refogar bem. Adicionava as batatas, cortadas às rodelas finas, e um rabo do peixe reservado, para dar gosto ao refogado. Acrescentava a água a ferver e deixava cozinhar, até ficar bem apurado (45 minutos, aproximadamente), e as folhinhas da salsa, ripadas.
Na hora de servir a sopa, misturava o resto do peixe reservado com o caldo.
Enchia a terrina com o pão cortado e punha por cima o caldo, com a batata e o peixe, tendo o cuidado de o peixe ficar por cima do pão (o peixe que não cabia na terrina era servido numa travessa, a acompanhar a sopa).

Agora, vou comer uma sopa de peixe e, a cada colher, fechar os olhos e acreditar que foi feita pela minha avó, com peixe fresquinho, pescado pelo meu avô.

Ilídia
Notas:
1 - A terrina da fotografia pertencia à minha avó e a toalha em crochet foi ela que fez para o meu enxoval, numa altura em que eu pouco ligava a essas coisas. Agora, não só dou importância a estes pormenores, como os exibo com orgulho.
2 – A Cartilha Maternal que aparece na fotografia é um fac-simile oferecido pelo Expresso, em 6 de Janeiro de 1996. Perguntei à minha mãe pela Cartilha da minha avó mas, infelizmente, perdemos-lhe o rasto.

10 comentários:

Receitas ao Desafio disse...

Que riqueza de discurso repleto de recordações deliciosas! Adorei o pormenor da terrina, que transborda tradição, o detalhe do rendilhado da toalha, e o cheirinho da sopa de peixe. Obrigada pela partilha!
Patrícia

turbolenta disse...

Uma bela história plena de grandes recordações e contada com grande emoção.
Todas nós recordamos histórias felizes dos nossos tempos de criança.
As avós faziam parte da nossa vida. Naquele tempo, ocupavam-se da lida da casa e tinham uma paciência de anjo para nos aturarem, contarem histórias e ensinarem.
A cartilha maternal de João de Deus ainda hoje continua a ser a base do ensino das primeiras letras nalgumas escolas. A escola João de Deus é um belo exemplo, que prova que esse sistema de ensino ainda hoje resulta em pleno. Foi nela que os meus filhos aprenderam.
Sabe que eu andava `a procura de uma sopa de peixe diferente, bem sucolenta e apetitosa e achei esta com um toque diferente da maioria das que pesquisei?
Quando vou de fim de semana à minha aldeia, não resisto a um prato bem cheio desta iguaria num restaurante lá perto, que a faz de uma maneira soberba.
Vou seguir estes passos e tentar reproduzir esta perfeição.

Na verdade, quando em tempos, nos davam determinadas coisas, nós não lhes ligavamos demasiada importância. Mas hoje em dia damos-lhes bastante valor, pois além do valor estimativo que as peças têm, cada peça tem uma história, um bocado da vida dos nossos antepassados dos quais nos lembramos com saudades.
E herdou 2 peças lindíssimas.

Receitas ao Desafio disse...

Gosto muito de sopa de peixe e, com certeza, essa é uma receita saborosa e especial por homenagear os teus avós: o teu avô por trazer peixe de mares lindos e perigosos e a tua avó por transformar esse rico alimento numa ceia de amor e carinho!!! Bjs, PMT

Susana disse...

E que bela e deliciosa participação!!! Essa sopinha tem aspeto bem tradicional e servida numa mesa rica como essa dá bastante prazer saboreá-la!

Beijinhos

Gisela disse...

Uma sopa de peixe é das coisas que me satisfaz mais, e em conjunto com uma história ainda melhor fico
Um beijinho e boa semana

Laranjinha disse...

Ilídia,

foi com imenso gosto que li a tua participação. A sopa parece-me deliciosa. Imagino o teu entusiasmo à volta do peixe apanhado pelo teu avô. Esses momentos são tão especiais. A toalha é muito bonita.

Muitos parabéns.
Um beijinho

Receitas ao Desafio disse...

Obrigada a todas pelos comentários simpáticos. Foi muito bom vasculhar na minha memória e recordar estes momentos, principalmente estes episódios passados com os meus avós, figuras bastante presentes na minha infância.
Ao mesmo tempo, é sempre doloroso evocar o passado, principalmente quando as pessoas que o marcaram já não estão cá como, infelizmente, é o caso dos meus avós.

Laranjinha, obrigada pelo desafio, que me fez recuar no tempo e despertar memórias bastante felizes.
Beijinhos para todas

Isabel Salvador disse...

Que rica sopa amiga adoro estas histórias lindas bjokinhass

Receitas ao Desafio disse...

Eh mulher, as minhas hormonas já não são o que eram desde que a Clara nasceu. Estou lavada em lágrimas a ler a tua receita.

Célia disse...

Adorei esta receita, e principalmente as memórias que a acompanham. Eu poucas ou nenhumas memórias tenho dessas. Mas fico emocionada de as ler.
Beijinhos e tudo de bom.